18 fevereiro 2018

Tróia dos Teucros

De vigília no alto da muralha
quando a madrugada desponta nos cumes do Ida
e Apolo lança sobre a cidade o seu manto protector
vejo os Aqueus levantarem o cerco da praia
soltando as amarrações dos navios aportados
depois de dez anos de escassez e privações
enfunando as velas bastardas
rumo à enseada de Tenedo
numa derivação de enganos
ajudados pelos aquilões do tempo

Navegam contra o halo desmaiado de Selene
      - que cruza os céus numa carruagem -
orientados por deuses e pelos Fados
cortando a crista das ondas escarpadas
de costas voltadas para os dardânios encarcerados
que em aprovação dos desertores
festejam os desposos dos arraiais da praia
saindo da clausura das muralhas
provando o sabor da maresia em liberdade
passando revista aos locais ermos
ao porto de onde largara a armada
abandonando o luto instalado
na boa Ílion injustamente sitiada

Às portas da cidade
deixaram o sombreado de um cavalo agigantado
com os costados disfarçados com ramagens de abeto afeiçoado
discutindo os pelasgos se seria uma dádiva de Minerva
ou um regresso profético armadilhado
tendo Cápis e Laocoonte prudentemente aconselhado
que se deite o mamífero de madeira às águas
pois qualquer doação espontânea dos Aqueus
seria um estratagema militar que suscitava inquietação
por isso queimem-se as dádivas acidentais
ateando-lhes o fogo divino debaixo do cepo
e abra-se um buraco nos côncavos interiores
para desentranhar a pestilência
deixada pelos inimigos dos Teucros

Posto isto vi os ânimos exaltaram-se
havia uns com grande sanha que defendiam
a entrada do madeiro para a Cidadela Sagrada
cumprindo-se venerandas honras a Palas
por isso Laocoonte foi morto por duas víboras
de olhos faiscantes e línguas vibrantes
que vieram do lado do mar ensanguentado
enrolar os corpos escamosos
em torno da sua Fortuna inesperada
acreditando os incautos que de um castigo divino se tratava
pois tinha vociferado contra a oferenda da praia
bramindo a arma
cortando o espaço
desferindo golpes cruéis contra o flanco da garupa do cavalo
cravando lanças nas ilhargas e no bojo
retumbando e gemendo as entranhas
como se o monstro de madeira
tivesse desígnios vivos
nas profundezas do seu esqueleto armado

Sob as patas do cavalo
vieram os homens colocar os troncos da mudança
franqueando as Portas Ceias
derrubando os muros que ampararam o cerco
lançando cordas de estopa em redor do pescoço da besta
sendo domada pelos de constituição robusta
deslocando a montanha de pau muralhas adentro
seguidos por mulheres e crianças entoando cânticos proféticos
lançando preces de purificação em fervorosa jubilação
erguendo as mãos ao ar em sublime devoção
agradecendo a dádiva a Minerva
vaticinando um futuro melhor
sob a égide sagrada de Palas Atena

Colocaram o equus insidioso na Cidadela
todos cegos e em incerne alucinação
dançando intensamente
ao som de cítaras em arco e batuques de pele
cobrindo os templos com ramagens purificadas
exortando os deuses em sinal de gratidão
irrompendo lamparinas e fogos sagrados por todo o lado
tanto nos altares de bairro como nas nascentes de água
óleos de tâmara e unguentos perfumados
oferecidos em homenagem com oblações várias
aos deuses salvadores dos Troicos
um touro sacrificado e o sangue doado
farinha ritual dispersada sobre a escadaria sagrada
luminárias enfumadas envolvendo os espaços
vinho e leite derramado em libações à divindade

Festejavam em euforia a fenda nas trevas
o fim do abismo e das noites sem estrelas
a benfazeja sorte aportada pelo madeiro de patas
fazendo dádivas a Baco
e tocando as flautas de Pã com os Faunos
batendo palmas e exortando danças frenéticas
lançando as lindas bacantes a cabeça para trás
rolando os olhos e atingindo transes hipnóticos
rogando preces cerimoniais aos Penates pátrios
com exuberância e gestos largos
acorrendo os homens aos altares sacerdotais
envergando mantos frígios e vestes formais
adornados com fitas coloridas nas têmporas
e coroas de flores perfumadas
comemorando a deusa na Cidadela de Palas

Com o girar do céu e o regresso das estrelas
percorro a cidade com uma candeia iluminária
e reparo nos Teucros cansados que adormeceram
pelo chão dos templos
pela sombra das casas
sob o manto da lua silenciosa
na grande noite em sonho e vinho sepultada
relembrando cauteloso os Fados enunciados por Cassandra
       - filha de Prímio -
e desacreditados por Febo por amor rejeitado
vaticinando a queda de Ílion
confiando às folhas do oráculo
profecias nefastas

Lasso regresso à casa de meu amo Eneias
recomendando os deuses vigília no telhado
sentado no topo da chaminé
vislumbro o luar espelhado num mar tranquilo sem vagas
isto quando ao longe surge uma armada inesperada
aproximando-se em silêncio
da nossa costa larga
da nossa praia desaperrada
e um alvoroço contido surge junto ao cavalo sagrado
pois das entranhas do animal de pau
saem agora homens armados
com escudos dardejantes e lanças de bronze flamejantes
estranhos aos habitantes da nossa cidade

Correm em direcção aos portões de Ílion
abrindo-os de par em par
quando a armada já se encontrava na praia
deixando entrar os argólicos infandos
que sinuosamente aguardavam o negrume da madrugada
para conquistar a cidade sagrada
para correr o sangue dos Treucos inocentes
apoderando-se das muralhas invioláveis
pela arte pelasga das doações enevoadas
elegendo o cavalo profético
nos altares nefandos dos gregos

Acordem dardânios meus! - gritei do alto da casa de Eneias
ao ver Tróia desmoronar a sua grandeza imaculada
rebentando os fogos pelas ruas e pelas casas
ouvindo-se ao longe o som das armas quebranto
como faíscas negras que rodopiavam infesto
cortando as lâminas os senhores e os servos desesperados
ouvindo ao longe os gritos das mulheres e das crianças aterrorizadas
infiltrando-se a morte em ondas maléficas por todo o lado
entrando os aqueus às centenas no sepulcro amaldiçoado
encostando escadas de encontro às muralhas
transformando a pacatez das entranhas da terra
num monstro com as garras assanhadas
chispando fagulhas e bolas de fogo vindas do ar
saltando sobre todos os Treucos
desiludindo todas as esperanças de paz

Corro a pegar nas crianças e nos penates teucros
levo Astíanax e Julo ao colo em direcção ao Ida
saindo por um portão secreto nos calabouços do palácio de Prímio
desconhecido dos aqueus como segura evasiva
fugindo pelas matas e pelos campos de searas
enquanto Eneias combate a pestliência abatida
sobre a vetusta Tróia onde se abrem todas as chagas
onde corre um sangue negro pelas ruas condenadas
onde o mundo se tisnou de negro
e o medo é aprumado nos brados lutosos das gentes abandonadas
onde os altares já são pasto nefando dos pelasgos violentos
e as preces são mudas ao som dos machados
despedaçando as traves e os batentes das casas
chacinando com rugidos de leopardo
todos os filhos eleitos de Dárdano - o primeiro

Olho para trás uma única vez
      - não vão os Aqueus terem trazido a Górgona com eles
        transformando em pedras os Teucros inocentes -
e vejo os clarões de fogo volteando no ar candente
a ira descontrolada perante a inclemência dos deuses
que se uniram aos Aqueus cruelmente
desferindo golpes e arrasando a neptúnia urbana
escravizando os Teucros e convertendo os templos
levantando da terra as fundações de glória
arrasando e prostando as memórias
da excelsa Ílion dos Deuses.

CRV©2018

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