12 agosto 2013

Os Barcos da Amuralha

Em pequena costumava correr
até à amuralha por cima da praia
para ver os barcos encalhados na areia
indiferentes ao sol e à chuva,
ao frio das tempestades,
ao ciclo das marés,
ao calor sem expressão ou esperança de ressurreição
ansiando o dia em que alguém da população
lhe apanhasse a sombra perdida
num dos ângulos esquecidos da quilha
subvertendo a inesgotável natureza daquela solidão.


Alinhados ao longo da costa
dispostos numa espera vencida
todos os barcos tinham uma relação inexprimível
com algumas metáforas da vida
como se mareassem com uma pretensão justificativa
por dentro de um espasmo escamoteado do tempo.


Os nomes lembravam poemas tristes
ou os versos de quem num fado canta
a "Esperança" ou a "Saudade"
pedindo que "Não venhas tarde"
rogando aos "Sete Irmäos" que "Deus te acompanhe"
na "Aragem" ou na "Bonança"
com "São Francisco" ou "Santa Joana"
protegidos no "Amor de Cristo".


Pela madrugada surgiam os primeiros pescadores
enleados em redes e bóias,
credos, súplicas e orações
sulcando o areal
com o céu gravado na imutabilidade dos rostos
sussurrando qual o casco a que iriam soltar as amarras
salvando-o de ser refém,
de ser mágoa aprisionada
gravada no ângulo mais obtuso das ondas.


Ficava a vê-los partir
a balançar por entre os primeiros soluços das vagas
crescendo
em direção ao génio de todas as metáforas
numa voragem sanguínea
onde se fundem todas as intimidades nostálgicas
navegando como casca de árvore, folha seca ou pluma agitada
esventrando o mar
rangendo a quilha
quebrando o silêncio violento absoluto do medo
animado por um fragmento translúcido
preso nas sementes que brotavam na raíz dos seus dedos
ultrapassando a noite e o dia
os temas invernosos e a estação quente
permanecendo de vigília
assegurando
todas as promessas messiânicas de regresso.

CRV©2013

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