27 março 2016

Gólgota

Vivo para além da cerca das gentes
naquela fronteira onde habitam e estremecem
os que são espasmo violento de corpo ausente
os que são reflexo etéreo do outro lado do mundo
garra intensa de altruísmo deslumbrado
pedra angular que liberta todos os caminhos
perscrutando o fascínio das ameias de dentro.

Procuro a apologia do despojamento
a depuração da respiração profética anunciada
a alegria dos que vagueiam no deserto
prometendo relâmpagos de primavera
a urgência das chuvas libertadoras
e o reverdescer do chão inerte em estrondosa alvorada
melífera silenciosa absoluta e premente
palavra que habita paredes meias com o tudo ausente
numa extravagância de constelações virtuosas
em abstracção evanescente
corpo insigne
enlevo de uma terra prometida de algorítmos densos
nas margens de pequenos impérios
que implodem por dentro
e se fazem
paradoxalmente urgentes.

Traço com o meu bordão rotas no céu
caminhos que se fundem numa única substância viva
agregando as ovelhas desgarradas e as feridas
transformando-as em cavalos vitoriosos de combate
sufragando as guerras, a peste, os iníquios sombrios
e a morte tangível na Gólgota em cruz presente
trecho de reino por três dias suspenso
invisível a todos os que passam indiferentes
levados na corrente do desinteresse
focados na idolatria dos ventos, da pele,
do convexo aderente ou nos abismos dos enclaves da mente,
protegendo-se entre acordes e solfejos obtusos
das palavras virtuosas e das transacções de sobrevivência
ignorando as mãos que acolhem de perto
emergindo em alvorada celeste
perante todos os que o trespassaram
quebrando todos os selos de pedra
elevando-se em verbo divino
após todos os pretéritos perfeitos
de se ter feito carne,
presente.

CRV©2016

1 comentário:

João Videira Santos disse...

Escrever assim, é ultrapassar o tempo das palavras comuns e procurar noutras o alvorecer dum novo caminho.
É dar voz à mudez das palavras e fazer florescer no seu significado a razão sublime de cada uma.
É um poema grande, extenso e profundo.
Para ler e reler. Pensar e voltar e guardar do seu todo a ideia que fica.
Um poema de quem traçou nas rotas do céu os caminhos do pensamento, deixando aquém o que fica das palavras.
Gostei, muito, prima Cristina. Beijos