11 julho 2016

O vendedor de Sonhos e Poções Mágicas

Atravessava a serra em marcha compassada
na hora em que o crepúsculo hesitante
afagava o brando silêncio solitário da estrada
e os últimos raios de luz debatiam-se rejeitando as trevas
agarrando-se em penitência agonizante
às fragas mutiladas cravadas nos cumes em chamas

Descia por um ermo fragoso desconhecido
rodeado de escaladas estratégicas
e emaranhados de silvas atmosféricas
viços sinistros espinhosos retorcidos
perdidos no meio de fendas e de pequenos ermos escondidos
predicados arruinados onde a morte edificava a sua casa
servindo por entre as farpas aguçadas
pequenos frutos para mãos decepadas
pomos sumarentos para consolação da sede em estio caliente

Apoiava-se num onagro da abissínia de orelhas quedas invertidas
acautelando todos os ângulos da carga secreta conduzida
duas arçãs cheias de graça
instrumentos de destreza e outras trapaças
conjunto bélico artilhado pronto a persuadir os incautos
que o circundavam em feiras e demonstrações ensaiadas
transmissão de patranhas e outros ardis lúdicos congeminados
numa teatralidade encenada à laia de grande sátira menipeia.

Dirigia-se para uma vila trancada a sudoeste
rodeada de brejos, outeiros e pequenos bosques erráticos inflamados
cravados entre verbascos, ulmeiros e explosões de folhas verdes
refém dos desertos, das águas, de um tempo e do esquecimento
de auroras boreais, céus azuis e nevoeiros densos
habitada por almas engastadas em recifes fustigados pelo nada
rodeados da plenitude de um isolamento extremo.

Aparecia envolto numa poalha remoinhada alada
que lhe contornava a sua espessa áurea
entranhando-se pelas cavidades anatómicamente escancaradas
olhos pretos falcolíneos que anteviam as oportunidades vivas
nariz adunco que olfatava os destinatários das suas trapaças
boca ajeitada a um irónico sorriso cínico que não enganava
língua afiada para desfiar patranhas viageiras e alegados de sedução brejeiras
pavilhão auricular externo atento a todas as heterogeneidades
carregado de enfeites, guizos, amuletos
e outros objectos ocultos de superstição e presságio demente
destinados a criar o temor nos crentes ignorantes
e a convencer os resistentes dos seus vedros artifícios e enganos.

Montava a tenda no meio do terreiro da vila
arreando o asno com um aparelho de fitas coloridas
que lhe dava um ar jovial de potro ladino com graça festiva
armando depois a barraquinha dos sonhos e adivinhas
a do curandeiro de maleitas obscuras e do endireita
a do arrancador de dentes, de tumefações e tumultos ardentes
e a casinha da eterna aflição
dos inchaços e dos supositórios de evasão.

Tudo pronto proponha-se logo começar a apregoar as suas deixas
alcandorado num madeiro tosco colocado em sopé sublimemente elevado
transformado pelas suas mãos prendadas em palanque edificado
dando-lhe altura, elevação, postura e grande distinção
sobre o aglomerado de corriqueiros imberbes locais
que ornavam curiosos, deslumbrados e boçais
o discurso estruturado asseverando as virtudes de poções especiais
que erradicavam mau-olhado, sortilégios, malfazejas, maleitas,
picadas de tse-tse e de estranhos carrapatos
imunizando contra venenos, potências ocultas e afecções protozoárias
dando a volta à cabeça, ao corpo e a ataques parasitários
libertando-os de moléstias e acédias
tanto físicas como mentais.

Anunciava o programa de actividades daquela tarde
insultando num megafone avelhantado
que roncava mais grunhidos distorcidos do que difundia as falsas verdades

      - ungentos para as maleitas do peito,
      - âmbulas de óleos perfumados para adoçar o ar
      - leitura de cartas e desígnios de providência
      - vaticínios proferidos por engajamento sobrenatural
      - descodificação das linhas da mão
          ( palmas imaculadas de virgens abençoadas )
      - mordeduras de cobra para as cãmbrias do cérebro
      - resina pegajosa para calar as criaturas tagarelas
      - cruzes-credo para os males de amor eterno
      - ungentos e mezinhas lascívias para damas honoríficas
      - pernas de rã afrodisíacas para cavalheiros adormecidos 

e todo um espólio convicto para persuadir o espectador escabreado.

Na hora em que se convertia em adivinho da felicidade
instalava-se na barraquinha obscura com luz velada
recebendo os condenados somâmbulos e os de alma asfixiada
os mortos vivos e os apocalíticos habituais
os que queriam o mal alheio e os vingadores implacáveis
tendo mezinhas para todos os feitos e oráculos da verdade
massagens de corpo localizadas, ungentos com pó de estrelas
fluxos de cinzas e ímpetos energéticos naturais
para contrariar possessões demoniacas, exaltações místicas
formigueiros de pessegueiro, espasmos e pulsões de extâse sexuais
que aviltavam o corpo e angustiavam a atmosfera de paz.

Deu entrada um cavalheiro graxo apessoado
de fisionomia ousada e olhos vis implacáveis
com casaco folgado, jaqueta preta e laço estrangulado no gargalo
abas de grilo falante, camisa de colarinho branco
calças imprudentemente elevadas
devido ao protuberante bucho animal
liga elástica que acautelava a compostura das meias alvas
e sapatos brilhantes de biqueira prontos a matar baratas.

Pediu com urgência uma mezinha sicária
destinada a uma bruxa que circundava as suas herdades
incólome a todos os ardis, artifícios e engenhos para a erradicar
à música persuasiva da alma, às agonias da prisão
e à solidão atormentada dos indigentes excluídos da sociedade
por isso se sentia em profunda desasperação
com odiosidade visceral e instinto homicida
pois a velha de uma fealdade hedionda,
com o rosto encarquilhado, olhos hialínos e pele ressequida,
deambulava pelas fronteiras do estado
com o cadáver curvado sobre o peso da sua curiosidade infinda
apoiando-se num bastão de carvalho certamente com poderes mágicos
pois ora se transformava em cobra ora se transfigurava em águia
iludindo todos aqueles que pagos a soldo a acossavam.

Por isso estava ali para uma intervenção extraordinária
a destruição definitiva da sombra que há muito o angustiava
para isso havia remetido ao silêncio o seu exército de criados
uma vez que com tiros e outro género de atrocidades
nunca a havia amedrontado. 

      “ Se não a mato à lei da bala há-de morrer de solidão.
      Não admitimos estrangeiros nas herdades
      que não tenham inteligência desempoeirada,
      perspicácia no trato comercial,
      e personalidades multiplicadas para o que der e vier”. 

Nisto o adivinho propôs-lhe uma solução
      "convida a velha para a tua mansão e dá-lhe a beber esta poção
      verás que cairá morta a teus pés"

E assim o homem apessoado partiu determinado
E numa tarde qualquer convidou a indigente para sua casa
fingindo-se benevolente e preocupado
deu-lhe pão e água
e por fim sacou da poção mágica que lhe deu a bebericar.
E aí o homem mostrou o seu desassombro
pois nada se passou como esperado
como no conto de Mallarmé
por baixo da corcunda e do feiume da máscara
revelou-se um rosto que o homem havia fixado na candura do passado
remontando ao tempo das virtudes exactas
despojado de interesses e de conveniências sociais.

Sem mais demoras a mulher partiu
deixando-lhe apenas algumas palavras
     “Na vida somos uma ilha,
       podemos não ser meta 
       apenas caminho
       mas as velas
      ardem todas até ao fim”

CRV©2016

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