13 novembro 2017

SHREAK a Ovelha

Certo dia,
Shrek a OVELHA
recrudesceu de uma grande prostração
daquelas que tolhem os movimentos
e humedecem profundamente a visão
fazendo-a tugir um balido plangente e sufocado
num tom melancólico e suspirado
fendendo toda a sua plácida e concomitante existência
sentindo eclodir dentro de si
prenúncios de uma secreta metáfora
que a envolveu subitamente numa revelação agitada
despertando-a de uma letargia
que há muito a serpenteava

Timidamente abriu os olhos cegos mortiços
criando-lhe um ímpeto energético frenético
como quem contém explosivos enterrado no espírito
levantando-se com vigor e energia
desenferrujando as patas empenadas
escorando as dianteiras com firmeza
e coiceando com engenho e travessura as de retro enjambradas
alforriando o coração emparedado por argamassas
surgindo-lhe de rompante um psicodrama libertador
que a levou a pousar o seu pasmo olhar observador
para lá das estacas do bardo
até às margens solitárias do rio BoaVida Formoso
promovendo o desaguar
da sua entorpecida essência interior

Observou o verde dos campos, as flores e as árvores
o balançar ameno do castanheiro da casa
os primeiros raios de sol que trespassavam as folhas
as manhas das libelinhas de incursões provocadoras
inspirando a brisa silenciosa proveniente da montanha
despontando-lhe um espasmo encrespado em torção arrepiada
que a percorreu desde o retro ondulado
até à excresceste giba óssea da mioleira
sacudindo um moscardo das orelhas
e franzindo a testa com perplexidade e estupefação
ao avistar um bando de aves
que alcançava os picos elevados da montanha
pensando que seria de grande dimensão
ter asas adequadas a voos insignes emancipados

Shrek a OVELHA
foi tomada por um torpor claustrofóbico
pois vislumbrou naquele voo instrumental
uma metáfora messiânica de abcissas coordenadas
animada pelo fulgor de grandes mudanças
decidiu ver o mundo, sair do bardo
livrando-se dos ralhos vernáculos do dono autoritário
e de uma tosquia primaveril da farta cabeleira
que no futuro poderia afectar mais do que a sua lanígera branca

       (deixaria de rebolar-se na relva atraindo o cabresto sensível
        as pastagens pobres, as charnecas e baldios
        as tosquias da lã de acordo com o grau de frisura da fibra
        a época de cio dependente dos períodos de luz)

Medindo as distâncias dali aos cumes das montanhas alvas
achou prudente aspirar a um salto mais moderado
ficando-se pelas margens do riacho solitário
que corria fresco e liberto ao acaso
por entre seixos e urze branca
escondido por acácias daninhas e um juncal de canas
habitado por cigarras e rãs danadas
com organização de sons em sequência escalada
que a impediam de toscanejar em paz.

E nisto adestrou a sua pulsão ávida, curiosa e natural,
que se entranhou nas suas patas traseiras
dando pequenos coices à laia de zaragateira
preparou o impulso derradeiro e final
para o salto de fuga do aprisco penitencial
Inspirou de um só fôlego o ar que passava
e iniciou a corrida entre o ponto em que se encontrava
e o vínculo imaterial que lhe alvitrava a liberdade
Sustendo a respiração
deu saltos olímpicos com balanço e distinção
imitando a arte e a graça dos ruminantes ágeis
aproximou-se da cerca e elevando-se no ar
alongando o corpo e esticando as patas esbeltas
visou o umbral da cerca e os campos
por onde deambulará em descontrolada debandada

Mas Oh! que infelicidade ocasional e fortuita
Shreak a Ovelha
acabou de bater com os seus belos apêndices ósseos
na trave mais mal posicionada da cerca
caindo redonda como uma ilustre desamparada
num local onde prosperavam malmequeres nativos de África,
ervas-azedas, papoilas-de-espinho e cardos bicudos
enterrando-os
tanto na traseira fofa como no focinho lanzudo.
Atordoada
esperou que os olhos parassem de rodar
e que a pouca massa cinzenta se ajeitasse no seu lugar
pois tentaria outra vez e mais uma se necessário
com a determinação que só acompanha os objetivos ousados
erguendo-se com rapidez e determinação
não fossem as suas irmãs perceber
o seu opróbio vexatório tombo no chão.

E ponderando novamente os riscos associados
voltou atrás e recomeçou a corrida
em direcção à guarda repressora do bardo
por isso correu cortando o vento
determinada a liderar a sua própria aventura
lançando-se com força, agigantando o seu impulso no ar
conseguindo ultrapassar a barreira obscura
desaguando cada gota do seu ser e pensamento
em esforço controlado
indo cair redonda do outro lado da cerca do prado

Shreak a Ovelha
correu para os subterrâneos das grutas escarpadas
sobrevivendo na mais obscura clandestinidade
habitando secretamente túneis claraboias e riachos de montanha
comendo erva tenra e bebendo dos veios que sulcavam as pedras
sete anos passaram até regressar ao bardo
quando o peso da lã que lhe pendia das costas
lhe tolhia os movimentos e a impedia de socializar
a alegria de a rever foi imensa
pois tosquiaram-lhe todas as camadas de pelo frisado
tendo perfeito um fardo de 27 kilos de lã encaracolada
que foi oferecido para aquecimento e paramentos
com grande generosidade amplitude e grandiosidade
a todos os pobres, pedintes e maltrapilhos
da sua pequena comunidade

CRV©2017

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