20 janeiro 2019

O outro lado do rio

Aproximavam-se num silêncio dissimulado
procuravam uma chave que abrisse a intimidade
revelavam-se insolentes, truculentos,
perturbadores da amenidade
queriam guerrear com propósitos selvagens,
bramindo lanças e espadas no ar
dando urros fero sanguinários
executando danças primevas
agachados de pernas vergadas
ora dançando como bacantes ébrias deslumbradas
ora gesticulando ao vento promessas danadas
mostrando sobranceira no ribombar do olhar
proferindo imprecações a esmo desenfreadas
frases invectivas que desenhavam pistas esquivas
numa tipologia auspiciosa
própria de gente muito ínvia e destrutiva

Viviam do outro lado do rio
a força da corrente impedia-os de passar
por isso erguiam-se logo ao romper do dia
dispondo-se a patrulhar a margem
estabelecendo tessituras franzino arquitectadas
sobre as acções raquíticas do dia tomadas de raiva
determinados por uma inexorável vontade em ceifar a paz
movimentando tropas, munições
e apetrechos cénicos desmesurados
desde a alvorada até ao cair da tarde
insinuando-se do outro lado
com porte encrespado e passadas insignes alongadas
omniscientes de verdadeiros iconoclastas
zelando por cada milímetro
do seu prestigioso perímetro diversificado
que ora aumentava ora diminuía
de acordo com as enxurradas que borbotavam o caudal
ou com a heresia das secas desproporcionadas
que drenavam as águas
e convidavam ao assalto final

Certa madrugada espreitei pela sacada
estranhando o silêncio invulgar da alvorada
a ausência dos gritos cavernosos semelhante aos das feras
proferidos numa linguagem furtiva que tatuava a paisagem
procurando as insólitas máquinas de guerra
os grotescos rostos invisíveis das sombras sinistras
observando todos os espaços entorpecidos pela hostilidade
mas do outro lado sumiram-se os antanhos do passado
de um dia para o outro
toda a guarida de gestos agressivos
que se insinuavam numa ideologia triunfante inflamada
tinha-se esfumado do território
extinguindo o andamento lento de todos os adágios
deixando o perfil longitudinal do rio
entregue ao repouso da comunidade de árvores
que languidamente se debruçavam sobre o caudal
tocando ao de leve a água com a ponta das folhas verdes
entre raios de sol que acolhiam refracções de luz intensa
antevendo por entre os ramos
o azul refractado de um céu pungente
as curvas sibilinas das nuvens suspensas
caminhando livres ao sabor da marcha do vento
questionando se a outra margem havia sido um sonho enfadado
ou o prenúncio de uma redentora transmutação do tempo

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