21 junho 2021

18 junho 2021

O Sótão

A casa centenária foi hasteada 
numa intersecção urbana da cidade 
onde proliferavam buganvílias 
carmim dramáticas explosivas
escoradas na anatomia de um muro altivo
vergando-se docemente ao sabor da brisa
sobrelevando as hastes espinhosas
por cima da clausula furtiva

A escadaria de entrada subia de alegria 
por entre delírios e comédias 
que tropeçavam por entre pleonasmos 
de um quotidiano efémero insuflado
poalhas leves e predicados de pulsar enviesado
ignorados na furiosa acústica da escalada
enquanto os pedúnculos terrestres
numa percussão estrondosa despropositada
atormentavam numa subida contornada
a candura das velhas tábuas de rigidez arcaica
que ascendiam até às águas-furtadas

No cimo havia um mundo imaginário
com uma flora diversificada
um refúgio de vocação esconsa
com uma janela deitada sobre o telhado
por onde entravam vagarosos rastos de luz 
que abrilhantavam a poeira que dançava no ar
iluminando o espólio obsoleto antiquado
impregnado de mágoas 
e aclamações pungentes do passado
projectadas na melancolia das sombras oblíquas

Era nessa ilha solitária
por entre sofás decadentes e carpetes desbotadas
berços que embalaram esperanças
mesas e cadeiras com atrocidades desamparadas
que se desvendavam os ignotos segredos de outrora
as cartas com fotografias amarelecidas 
as flores secas que perfumavam as páginas dos livros 
os laços aos quadradinhos
a colecção do “Mosquito" encadernada
a capa e a espada da farda
e o recanto preferido ensaio de todas as palavras
sempre que o silêncio entrava de mãos dadas

Liberta das amarras da tangibilidade enfadada
as viagens faziam-se por dimensões alienadas
ora identificando a aba das vestes do tempo
ora exortando o alarido das almas
fazendo voar a imaginação
pelas entranhas e ângulos adjacentes 
expondo enredos e palavras obstinadas
espólios inconformados com a erosão do tempo
esquecidos num inventário doce não reclamado

CRV©2021

16 junho 2021

Kepa Oscoz

250 Year-old Tree of Life Root

11 março 2021

It's time to Rest

He felt that his time had come
So he gathered his family to express his last wishes
He looked at his wife and his beloved children
And hoped to protect them in his predictable time ahead

In life he was awarded by his bold willingness
He endured audacious hardships
And dismissed unfavourable upsettings
Facing all with an honourable fighting spirit

So now he just wanted to rest in peace
In a quiet plot under a big shadowed tree
Where birds sang in melodious competition
And sunsets would lay upon golden grassland fields

Suddenly his voice began to loose strength
Becoming a muffled murmur 
a declining intonation 
Soon overlaid by an unexpected gust of wind

They mourned in sorrow and grieved their lost
They framed his medals and remembered his courage
Prepared the funeral and followed the hearse
Heading towards the secluded chosen place

They bought a plot of land withdrawn from public sight
In a private memorial park 
where tree branches intertwined in connecting lines
Where grass was green and a chapel had a sign:

“In this cemetery you can only bury white"

They all stared at each other while their faces turned pale
Does God choose his faithful flock by colour range?
Surely it was a mistake a biased preconceived action
so they entered the chapel eager to reassess the undesirable tablet

There was a priest inside who saw them rushing
And collectively they advocated for social justice
They were there to fulfil their father wishes
Tragically it seems that there was an unjustifiable discrimination

Father had served his country regardless origin or race
He honoured his post being proud for what he endured
Now his corps stands unrestrained at the bottom of the stairs
In a mist of unfortunate prejudice and intolerant crippled distress

The priest prayed to God and asked for some enlightenment
So that the funeral was not overshadowed by an unjustifiable restriction
And then he came out in complete trust of his secluded confidence 
Sharing the message that Jesus had also been treated with regrettable unfairness

The sign was removed and the crowd was relieved
Now they could fulfil the wishes from their beloved relative
And they followed the casket chanting a biblical text 
The story of Christ himself who resurrected after dead 

CRV©2021

10 março 2021

Benjamin Vitor



                                                                         Angel

30 julho 2020

Memory of THE Brave

They have struggled for freedom
fighting for whatever their reason
smashing ditactors
undermining opressors
breaking out obscured bars and chains
which refrained their downtrodden spirit

No, they won't be forgotten
nor their fight will be in vain
there will be glory in every corner
in the trenches in the barracks
at every speaker's language
for all those who perished
shouting out against every light extinguished
there will always be a loudspeaker
remembering the heroes
who succeeded every ruthless leader

CRV©2020

05 julho 2020

17 junho 2020

10 Haikus - Solidão

A frequência da minha solidão

tem uma ilusão perfeita

esculpida por poetas e palavras soltas



Apanha o perfil acolhedor do silêncio

referencia-o como modelo

torna-o um caso de posse absoluta



Atava as pontas do silêncio

com a lentidão dos justos

a rapidez sempre embaraçou a meada das confissões



Trazia as nuvens escondidas nas mãos

separando as partículas ácidas

daquelas que confortavam a solidão



Caminha à volta do sol

estende as mãos e recebe

todas as oferendas divinas



Constrói a tua solidão

à tua imagem e semelhança

curva-te sobre o seu espectro de luz



Cultiva a solidão como se de ouro se tratasse

ceifa-a em medas selvagens

com as espigas douradas faz o teu leito restrito



Guarda as explosões para depois

junta os binómios da contemplação e da alegria

e festeja em abnegado fervor



Agradece o ruído

a ampliação da interioridade

resulta da monção que se abate nos campos



Sonhava com a mais pura solidão

as palavras brotavam

como botões incandescentes em flor

CRV©2020

10 junho 2020

Louise Bourgeois

Mamá  - Guggenheim  Museum - Bilbao

01 junho 2020

10 Haikus - Cumplicidade

Nascemos do mesmo tronco

rompemos a atmosfera

com estrondosos ramos verdejantes em flor



A estrada é recta

fomos sempre dois

a trilhar todas as pedras



Desconhecem a chama exilada que volteia

o amor que corre

por entre as palavras ternas



O vento que acompanha o teu olhar

trás na aragem as mãos de Deus

envolto na rugosidade do tempo



A beleza de todas as coisas

reside no tempo

e na mão segura que nos acompanha



Perdi a conta aos aniversários

o exílio voluntário

resgatou-nos de águas turbulentas



Não há monotonia

quando os abraços são doces

e o aconchego ressuscita a esperança



Procura a tua ilha secreta

sobrevoa tormentas e tempestades

traça a rota do amor puro, perfeito



Diz-me se o toque da madrugada

nus escora

entre gotas de orvalho e os aromas da primavera



Desenha uma história em cada ramo

um filho em cada flor

epifanias transfiguradas em Deus omnipresente

CRV©2020

19 fevereiro 2020

Lee Lawrie

Atlas - New York City - Rockefeller Center (Photo: Chance Agrella)

16 fevereiro 2020

A Pústula

Corrupção, depravação, perversão
são os arautos das pústulas do regime
bostelas epidérmicas
que se instalam num corpo social vertebrado
escondidas entre a tela subcutânea
dos que arvoram a caminhada hipócrita
e a passividade dos agentes cúmplices
que silenciam as transgressões
recebem comissões
velando na sombra
o eclodir de uma pápula purulenta
movida pela peste suína da plutocracia

Germine-se uma verrina comunitária de exprobração social
a premência em revelar os emaranhados ociosos
os rostos invisíveis, os sombrios decadentes
a carranca das ilhas ocultas a perder de vista
as sórdidas preces montadas a cavalo
as canções pronunciadas por estranhas aves
o metabolismo da encenação impoluta
o devasso, o corrompido, o subornado
o seduzido pelo mecanismo da avidez apodrecida

Corte-se o pedúnculo social que se ramifica
numa tortuosa inflorescência degenerada
corte-se a asfixia da burocracia inútil
exponham-se as entranhas, o cérebro, os olhos,
o pântano denso de vísceras inflamadas
denuncie-se o obtuso, o devasso, o profanado
o santo do diabo, o traidor da espera velada
cumpram-se os apelos de Eça, Ramalho e Dantas
expurgue-se a sociedade dos vermes que rastejam
das sanguessugas que se alimentam dos demais

CRV©2019

31 janeiro 2020

Shona

Family

11 janeiro 2020

O Padre da Freguesia

Acorriam todos os anos ao largo ermo do bairro
repleto de laranjeiras e limoeiros decorados a preceito
com ornatos de flores e fitas coloridas agitadas
santos de pau carunchoso suspensos
faixas entrelaçadas e triângulos de papel em nastro
com as insígnias representativas
da comunidade de pedreiros, padeiros, pescadores
e vesgos das cores naturais
que se insinuavam na feitura dos preparos
dando utilidades lúdicas às ferramentas da sua arte
acertando pedras da calçada desengonçadas
construindo cavaletes com tábuas usadas
fazendo das pranchas mesas de ocasião
quer para elóquios momentâneos inspirados
quer para as esperadas comezainas
em animado rega-bofe da população

Nas comemorações à Senhora da Boa Viagem
davam-se alvíssaras ao padre pródigo e liberal
por acolher à porta do venerado santuário
um notável ladário de penitências de expiação
uns de joelhos rastejavam até ao altar
outros de cócoras oravam em comiseração
os da terra misturavam-se com as gentes de fora
atraídos pelo mesmo ensejo de profecia e salvação
realizando benzeduras de protecção
contra jetaturas, malefícios e sortilégios de lua cheia
mezinhas sicárias, quebra-luzes, para-ventos
e outras crenças obscuras arraigadas ao espírito da gente
e a fenómenos de natureza divina extraordinária

Por altura dos unguentos de alma
a portada da igreja era o local preferido
do padre humoso de batina alva
cuja extensão vertical atarracada
desfavorecia-lhe a bainha do hábito
que se arrastava pelas pedras da calçada
formando uma coroa de lama preta
junto às cândidas meias elásticas
que espreitavam encardidas
por entre os recortes das alparcatas missionárias
adquiridas num colégio de frades
como penitência da sua soberba dissimulada
divulgando assim ao seu rebanho
uma imagem de digna austeridade eclesiástica

As meias firmadas ao apêndice animal
com um cadarço de seda rosa enrodilhado
ajustavam-lhe as sanefas desproporcionadas
evitando entorpecimento de artelhos
dilatações de varizes, edemas, flebites,
e tumefações generalizadas dos antrópedes posteriores
pois obedecendo o corpo ao peso da gravidade
o mais certo era a natureza curvar-lhe o suporte vertical
à imagem dos truncados arcos góticos
ou das aduelas dos toneis inchados
pela fermentação natural nas caves Primavera
depois utilizado na eucaristia de Cristo ressuscitado

Com uma avantajada proeminência abdominal
o santo eclesiástico tinha um tecido adiposo excepcional
fazendo lembrar uma Matrioska de sete saias
ou um ovo da páscoa de chocolate amargo
escondendo por baixo do cândido hábito
inolvidáveis brindes da farinha Amparo
que distribuía gratuitamente pela população
seja o conjunto de loicinhas antigas Mari-Lena
os tubos Cisne de cola seca
apitos de plástico coloridos da Disney
os 7 pára-quedistas desportivos
o miúdo da trotinete com a corneta verde
o pateta, o macaco ou o ursinho de boina em PVC
ou ainda as caixas-coração com bonecos amarelos
todos da marca registada “Predileta" ou "BULLY 33"

Três peças guarneciam as mãos do sacerdote autóctone
o terço para as benzeduras das beatas
o lenço de quadradinhos para o ranho a meio da eucaristia
e o anel de ouro que ostentava flamejante
feito de encomenda com as esmolas dos pobres
num ourives de uma terra algures distante
para usar em cerimónias com pompa e sumptuosidade
à medida do seu dedo mindinho avantajado
que agitava em alvoroço
sempre que os bajuladores serviçais do povo
vinham de rojos comungar dores e penitências
beijar-lhe o anelão incrustado com um Cristo torturado
onde sobressaía uma cruz em diamantes que o estimulava
sentindo-se um rei com o povo a seus pés
um altruísta Citizen Kane escolástico
de abnegação e piedade pelo sofrimento da ralé

O ritual mexia com as suas convicções fantasiosas
gerando-lhe um êxtase intrínseco relacionado
pois o padreco murmurava orações circunspectas
com pertinácia devoção exacerbada
apelando à graça de Deus e ao conforto da congregação
instigando no seu corpo um deliriam tremens
pois a instrumentalização do beija-mão
lembrava-lhe as antigas mordomias escravas
sentindo-se em segredo o senhor da uma plantação
cuidando do seu rebanho com zelo e diligente austeridade
expulsando as ovelhas ranhosas e os carneiros indesejados
bajulando as fêmeas domesticadas
enaltecendo a qualidade dos machos de raça
mas não admitindo de forma liminar
a presença de varas de porcos
ou quadrúpedes tresmalhados

Era neste feudo suserano que o padreco avantajado
andava num corrupio por entre a populaça
aproveitando a baderna nocturna
saía da sacristia com a caixa das dádivas
ocultada por baixo da roupeta larga
correndo as tascas das cercanias
aprovando a transmutação do vinho
benzendo senhoras de gema
cavalheiros apessoados, galfarros
e alcateias de serviçais dedicados
divulgando a palavra de Deus
pois todos eram merecedores de benção e caridade
fossem putedo pervertido em prostíbulos
ou animais despojados de casa

As ruas foram engalanadas para a procissão
nas sacadas abriram-se as colchas das madrinhas e das avós abastadas
prodigiosos fogaréus ornamentavam becos e pátios
todos se acotovelavam para um posicionamento capaz
encavalitando-se nas varandas desafogadas
ou no pelourinho do largo das vergastadas
a fanfarra dos bombeiros trouxe pratos e bombos
vieram atiradores de foguetes e cabeçudos enormes
os cozinheiros montaram os banquetes sociais
com uma variedade infinda do reino animal
grelhadas mistas, açordas de alho e poejos
sopa de tomate com bacalhau e queijo de cabra
colhões de porco preto, carapaus no espeto
bexigas grelhadas, farta-rapazes da Beira,
queijo picante de Castelo Branco
vinhos à Martel, jeropigas e gingas repletas
minis e lambretas à discrição.

Ao pôr-do-sol aprontou-se a solene procissão
ateou-se fogo ao madeiro empilhado
que chispalhou profusamente iluminando o adro
montaram-se os andores com os veneráveis canonizados
e quando todos se aprontavam para desfilar
ao longo de coloridos tapetes de sal
eis que aparece o padre esbaforido
à porta do santuário a gritar angustiado
“Roubaram a Senhora da Boa Viagem!"
E o povo entendeu ser esse um mau presságio
ficar sem a protectora de pescadores e povoado
dispondo-se os buliçosos a procurar o larápio
“Onde está ele?” “Vamos no seu encalço à paulada!"
pegando sem delonga em lenhos incandescentes
incitando de imediato à revolução armada

O povo dispersou rua abaixo
na senda do estuporado larápio
pisando os arranjos ornamentais feitos de sal
as flores, os cristos, os peixes e os barcos de pesca
procurando a imagem da Senhora entre becos e bancas
submergindo a tristeza nos rostos desesperados
gritando “Anda cá ó ladrão!”
na expectativa de um sinal ou de um fenómeno divino extraordinário
mas da Senhora nem sombra, indício ou traço
apenas a névoa da madrugada
e um mergulho num desespero espiritual
deixando todo o povo curvado
sem a bem-fadada protecção secular

O prenúncio das pescas de porvir
via-se agora com agoiro comprometido
e o povo recolheu às suas casas desolado
clamando pelo fim das adversidades
alvitrando o remanso de melhores dias
despedindo-se do padre atarracado
que se recolheu cabisbaixo às catacumbas do santuário
dando à chave da sua cela em tom humilde e oratório
pedindo a remissão dos pecados da comunidade
apelando pio e penitente ao perdão do anjo Custódio
que convole os gananciosos, os transgressores, os pecadores
e todos aqueles que nasceram com vícios
ou indecorosa degradação moral

Nisto abriu a porta do seu guarda-fato
acocorou-se para dentro do armário
e desaparafusou as costas de madeira natural
encobertas pelos paramentos litúrgicos
as batinas pretas de 5 abotoaduras e 33 botões corridos
em honra às chagas de Cristo e sinal de morte para o mundo
as capas e túnicas alvas da eucaristia dominical
dando por detrás acesso a uma portinhola de relicário
onde guardava uma cruz peitoral,
um anel de São Pedro e um báculo de pastor papal
acessórios privados dos altos eclesiásticos
sentindo o padre serem seus por direito
pois tinha um ego enfunado não permitindo
beliscadura na sua magnitude secular

E eis que no canto do oratório ocultado
por detrás dos cíngulos de castidade
e outros instrumentos de expiação à danação
encontrava-se a Senhora da Boa Viagem
desaparecida por mistério fortuito condenado
emparedada no compartimento secreto do padre
junto a um nicho de imagens abnegadas
emergindo daí uma energia pia e radiante
um ardor que bulia com o seu sistema homeopático
presidindo em solo comisso ao ritual de câmara ardente
criando axiomas empíricos
e congéneses interlocutórias pessoais.

O sacerdote relatava mansamente a sua dor
ressentimentos mortais e ciúmes viscerais
martirizando-se e penitenciando-se da cobiça alheia
tendo fúrias na competição com as aldeias próximas
invejando os santos alheios, relicários vários,
os retábulos e altares decorados
necessitando de mortificar o corpo e alma
ora dando com a cabeça no chão
ora usando cilícios de crina ou de sete pontas de metal
à imagem de São João da Cruz na subida ao Monte Carmelo
fazendo grandes hematomas na calota craniana
constituindo o martírio solitário
uma penitência de inolvidável expiação
transtorno que aceitava com necessária abnegação
certo do seu destino fadário:
"Um trono dourado aguardava-o no Reino dos Céus."

CRV©2020

25 novembro 2019

01 novembro 2019

10 Haikus - Trevas

Dissertavam sobre escuridão e relâmpagos

Ignoravam o que o trouxe ali

- Olhai para as palavras que lhe saiem das mãos



Ataram o cadáver à pira funerária

observaram as cinzas remoinhadas

erguendo-se em clarão azul celeste



Fizeram um pacto com Hades

resgatavam almas padecidas

adentrando-as num inferno de putrefação



Trouxeram a agonia das trevas por perto

não contaram com o ancil em redor

talhado nos brocardos da verdade



Não cessam de espiar a privacidade

a desonestidade foi sempre a arma embainhada

para se moveram por perto



Atenta ao ardil que pende sobre o cadáver

o enredo grotesco

tem a morte na conclusão



Não olhes para a desonestidade do ganancioso

repara antes

nas suas mãos vazias



Contra os estrondos das trevas

coloca o elmo invisível de Hades

liberta-te dos falsos profetas




A felicidade alheia constrangia-lhe as veias

os sorrisos sibilavam-lhe ódios e invejas

garra mordaça espasmo de sombras vazio



Não dobrarão a verticalidade do Bem

as trevas da sua conduta

reverterão à escuridão das suas entranhas


CRV©2019

16 fevereiro 2019

Karl Kiss

Karl Kiss - Amazon

20 janeiro 2019

O outro lado do rio

Aproximavam-se num silêncio dissimulado
procuravam uma chave que abrisse a intimidade
revelavam-se insolentes, truculentos,
perturbadores da amenidade
queriam guerrear com propósitos selvagens,
bramindo lanças e espadas no ar
dando urros fero sanguinários
executando danças primevas
agachados de pernas vergadas
ora dançando como bacantes ébrias deslumbradas
ora gesticulando ao vento promessas danadas
mostrando sobranceira no ribombar do olhar
proferindo imprecações a esmo desenfreadas
frases invectivas que desenhavam pistas esquivas
numa tipologia auspiciosa
própria de gente muito ínvia e destrutiva

Viviam do outro lado do rio
a força da corrente impedia-os de passar
por isso erguiam-se logo ao romper do dia
dispondo-se a patrulhar a margem
estabelecendo tessituras franzino arquitectadas
sobre as acções raquíticas do dia tomadas de raiva
determinados por uma inexorável vontade em ceifar a paz
movimentando tropas, munições
e apetrechos cénicos desmesurados
desde a alvorada até ao cair da tarde
insinuando-se do outro lado
com porte encrespado e passadas insignes alongadas
omniscientes de verdadeiros iconoclastas
zelando por cada milímetro
do seu prestigioso perímetro diversificado
que ora aumentava ora diminuía
de acordo com as enxurradas que borbotavam o caudal
ou com a heresia das secas desproporcionadas
que drenavam as águas
e convidavam ao assalto final

Certa madrugada espreitei pela sacada
estranhando o silêncio invulgar da alvorada
a ausência dos gritos cavernosos semelhante aos das feras
proferidos numa linguagem furtiva que tatuava a paisagem
procurando as insólitas máquinas de guerra
os grotescos rostos invisíveis das sombras sinistras
observando todos os espaços entorpecidos pela hostilidade
mas do outro lado sumiram-se os antanhos do passado
de um dia para o outro
toda a guarida de gestos agressivos
que se insinuavam numa ideologia triunfante inflamada
tinha-se esfumado do território
extinguindo o andamento lento de todos os adágios
deixando o perfil longitudinal do rio
entregue ao repouso da comunidade de árvores
que languidamente se debruçavam sobre o caudal
tocando ao de leve a água com a ponta das folhas verdes
entre raios de sol que acolhiam refracções de luz intensa
antevendo por entre os ramos
o azul refractado de um céu pungente
as curvas sibilinas das nuvens suspensas
caminhando livres ao sabor da marcha do vento
questionando se a outra margem havia sido um sonho enfadado
ou o prenúncio de uma redentora transmutação do tempo

CRV©2018

09 dezembro 2018

Gunsontheroof

Paper - Technique Face Idea

29 novembro 2018

Violação

Até quando as investidas repetidas
os cavalos de tróia
as janelas partidas
as raparigas violadas,
as noites de guarida

Até quando as posses cerimoniosas
que iludem o justo
enaltecem o furto
conseguem o estupro
o rasgar da tranquilidade,
cavando mentiras
sepultando angústias
tornando a multiplicação dos pães
num negrume de trevas obscuras

Até quando as invasões bárbaras
os curiosos nos carros
o moreno do ouriço
            encostado ao contentor do lixo
os mails roubados
os assaltos doentes
os virtuosos dementes

Até quando a sangria infligida
os cortes profundos
as lanças, as pedras, as câmaras
o casal dançarino
os óculos com tudo
as escutas do silêncio
o vento entranhado nas portas
o frio
a perseguição
o assalto diário ao cerne ausente

Até quando as mensagens obscuras
o deletério do mandante
a indiferença dos que venderam a alma
a dança em redor do corpo inerte
a afasia do epigrama simbolístico
a raíz ceifada à gadanha
regozijando o achaque e o remoque
como uma bem-aventurança
súplica enaltecida 
alimentada  pelos adoradores 
da Besta maldita

CRV©2018

05 novembro 2018

Antonio Canova

Antonio Canova - Teseu and the Minotaur (detail)

15 outubro 2018

8 Haikus - Tiros

Dá uma salva de tiros na partida

festeja os bandos de aves

que voam em serena confissão



Ignora as imagens que desfilam ao largo

mede a distância proxémica necessária

evita o frémito dos disparos



Roda a roleta primeiro

depois aponta a arma ao peito

dispara certeiro sobre tudo o que sufoca



Acaricia o gatilho do olhar

imagina o trovão do disparo

dá o último suspiro incontrolável na ilusão



Enche o tambor e dispara ao acaso

estilhaça

os corpos entrelaçados da imaginação



Atira sobre a cidadela de chumbo suspensa

mata as nuvens que se insinuam

ceifa tudo o que se impõe à imaginação



Ignora os tiros de pólvora seca

as pedras também

caminha com a segurança dos justos



Mistura o carvão, o salitre e o enxofre

dispara rumo ao céu

até que Deus te ouça

CRV©2017

30 setembro 2018

Igor Mitoraj

Igor Mitoraj in Pompeii

24 setembro 2018

Madagascar

Numa rua inquieta
feita dum avesso escuro da vida
observo os que passam invisíveis
almas impregnadas de uma tristeza que grita
farrapos arrumados a um canto das biografias
renegados da sociedade
pobres que se passeiam pela nossa consciência
numa antecipada transcendência da sua morte física

Inesperadamente
estendem-me a mão
agarram-me os braços
puxam-me o casaco rogando atenção
e pedem perdão por suplicarem
por aspirarem à prodigalidade dos que nada têm
por um bocado de pão
por uma metamorfose da fome ignóbil
um rasgo de comiseração
um soco no estômago na amputação diária
um rasgar excepcional
da humilhação silenciosa subterrada

Rasgo o espaço viscoso em redor
espantando a melancolia exacerbada
dos que soletram murmúrios com lábios tristes
revolvendo com pás e forquilhas
as teias movediças dos afectos escondidos
promovendo um sorriso sustenido
depois um outro e um olá abstracto
lavrando rostos como arados ao vento
repartindo o pão
pequenas sementes secretas
que interrompem tormentos
por momentos
avidamente
a esperança não é um cepo queimado de ilusões

CRV©2018

26 agosto 2018

Kristen Visbal

Fearless Girl on the International Women's Day

09 agosto 2018

12 Haikus - Pedras

Cuida da tua casa de pedra

das sombras apolíneas que a envolvem também

deixa-as preencher o espaço introspectivo das palavras



Pouco importa aquele que te arremessa pedras

o vento tratará de lhe oscilar a mão

esculpindo arcos frustrados no tempo



Enaltece o poder das pedras

como Albertus Magnus profetizou

são intrínsecos os elementos secretos sem nome



A distância entre a pedra oca e a tua consciência

deve ser medida

com o metro do desprezo agreste



A pedra onde jaz a água benta

enche-se de preces de bem aventurança

em busca do halo cativo nas trevas



Mantém o teu corpo de pedra

a leveza da tua imaginação

rasga o céu com a volúpia do voo



Caminha sobre as pedras sem hesitar

o beduíno errante

também costuma caminhar sobre o fogo



Juntarei todas as pedras delapidadas

de cada uma farei um poema

uma dissertação sobre a intensidade do fogo



Voltas ciclicamente para arremessar pedras

o jogo do medo

obriga-te a matar a sombra do teu desespero



Indiferente às pedras do caminho

percorro o deserto fustigado

antecipando o encontro de uma flor



As pedras arremessadas são migalhas

vê a luta que te corre nas veias

observa o peito que se rasga de dor



Apanhei todas as pedras arremessadas

liguei-as numa meda apertada

desintegraram-se quando lhes murmurei palavras de amor

CRV©2018

21 julho 2018

Antonio Canova

 Augustinerkirche - Wien - 1805

14 julho 2018

Golden Silk

I’m just a forest spider knitting a steal wall

wishing you to get stuck for my devilish dreams

like that unfortunate mosquito up there

which collided with my web

succumbing to a trembled body

and the charm of involving legs

not knowing on its way towards me

that it would be just another misfortunate applicant

on a lushing dinner full of bugs and small delicacies

CRV©2018

01 abril 2018

Heitor da Silva Costa

Cristo Redentor - Rio de Janeiro

25 março 2018

Extermination Camp

Era forte e de porte majestoso
tinha uma imperceptível elevação no peito
impossível de descrever se seria apenas a vaidade irrompida
ou algum inchaço inflamoso à flor da pele
daqueles que transpõem as barreiras da virtude
e se instalam no lado despótico da malignitude
gerindo os seus actos de forma abstrata e cruel
submergindo no prazer sádico das vicissitudes amiúdes
destruindo e galvanizando os pobres
os astecas e os maltrapilhos de porta
rejeitando a pontapé os desajeitados e os líricos de circo
e todos aqueles que por artes próprias
se atreviam a olhar de soslaio disfarçado
ou pior ainda
a cruzar o seu espaço empírico reservado
ditava-lhes o extermínio superlativo retardado
em modo de aniquilação amiotrófica exposta
com transladação e inumação exímia total

Olhava com desprezo a generalização do universo
por isso vagueava entre a realidade assente
e as imagens que galopavam
nas suas simulacras experiências
colocando a sua tónica utópica ensaiada
nos caderninhos onde anotava e desenhava
elipses perturbadoras com ângulos enviesados
enchendo de anagramas as mentes que o escutavam
levando os incautos a exclamações de boquinhas abertas
espasmados pela perversidade aberrante
das instruções minuciosas de como cortar as asas
a moscas, perdigotos e gafanhotos perniciosos
ou como dissecar rãs e outros batráquios rastejantes
explanando com eloquente lucidez e detalhe
as torturas que os seus capatazes
deviam infligir aos provocadores
apanhados a menos de mil metros
da sua coiceira engalanada
pois daí retiraria boas inspirações e ideias
tomando nota no caderninho dos lembretes
quantas dores sofreram os imprudentes
ou quantos tormentos mereciam ainda padecer
fazendo orar os que imóveis vibravam
aterrorizando os incrédulos espectadores

Era importante evidenciar a sua força
numa demonstração viril do seu diletantismo exuberante
arrasando todos os párias estéreis
cercando todos os factos de um negrume assustador
fazendo preparativos para as exterminações pontuais
e longas congeminações pungentes
sobre quem iria degolar nessa manhã
ou quem iria crucificar lentamente
assumindo o seu olhar uma loucura selvagem
que lhe salientava as zigomáticas tissuras do rosto
rendendo a plateia aos seus trejeitos patológicos
desprezando a redenção e a comiseração
através de um qualquer acto de contrição amiúde
fazendo antes discursos mudos
com largos gestos ensaiados eloquentes
preparando o público para as decapitações urgentes
desprezando os tratos menores
e exacerbando as reentrés com as suas disposições
pois tratava-se sempre de mais uma demonstração lúdica
para todos os seus seguidores obedientes
do método de extração de emoções no vazio
como algo digno a reportar
ordenando por isso que quebrassem braços e pernas
soterrassem cabeças no mais ermo lugar
e escutassem as vozes angustiadas
os gritos em surdina e os apelos desesperados
registando tudo
dando largas à criatividade
desbridando caminhos
apoteoses imagéticas da irredutibilidade real

CRV©2018

17 março 2018

12 março 2018

7 Haikus - Musas

Constrói a musa à tua imagem

preenche todos os conflitos internos

rodeia os gestos de cândida ternura



Cria as musas com a essência da verdade

a poesia torna a alma invencível

às tempestades que se insinuam no tempo



Invoca as musas dos teus sonhos

abre os átrios trancados

revela os poemas ocultos



Escreve sobre o tempo

sobre as musas desejadas

adapta os olhos à imaginação fértil



Idolatra as musas sonhadas

os anjos fizeram-se

para as revelações dos cegos



Não importa as musas que atravessam os teus poemas

releva apenas o facto

de voarem entrelaçados no tempo



Dedica os teus poemas ao mundo

curiosa a interpretação daqueles

que se julgam agraciados na tua prosa

CRV©2018

26 fevereiro 2018

The Games

The Greek Games

18 fevereiro 2018

Tróia dos Teucros

De vigília no alto da muralha
quando a madrugada desponta nos cumes do Ida
e Apolo lança sobre a cidade o seu manto protector
vejo os Aqueus levantarem o cerco da praia
soltando as amarrações dos navios aportados
depois de dez anos de escassez e privações
enfunando as velas bastardas
rumo à enseada de Tenedo
numa derivação de enganos
ajudados pelos aquilões do tempo

Navegam contra o halo desmaiado de Selene
      - que cruza os céus numa carruagem -
orientados por deuses e pelos Fados
cortando a crista das ondas escarpadas
de costas voltadas para os dardânios encarcerados
que em aprovação dos desertores
festejam os desposos dos arraiais da praia
saindo da clausura das muralhas
provando o sabor da maresia em liberdade
passando revista aos locais ermos
ao porto de onde largara a armada
abandonando o luto instalado
na boa Ílion injustamente sitiada

Às portas da cidade
deixaram o sombreado de um cavalo agigantado
com os costados disfarçados com ramagens de abeto afeiçoado
discutindo os pelasgos se seria uma dádiva de Minerva
ou um regresso profético armadilhado
tendo Cápis e Laocoonte prudentemente aconselhado
que se deite o mamífero de madeira às águas
pois qualquer doação espontânea dos Aqueus
seria um estratagema militar que suscitava inquietação
por isso queimem-se as dádivas acidentais
ateando-lhes o fogo divino debaixo do cepo
e abra-se um buraco nos côncavos interiores
para desentranhar a pestilência
deixada pelos inimigos dos Teucros

Posto isto vi os ânimos exaltaram-se
havia uns com grande sanha que defendiam
a entrada do madeiro para a Cidadela Sagrada
cumprindo-se venerandas honras a Palas
por isso Laocoonte foi morto por duas víboras
de olhos faiscantes e línguas vibrantes
que vieram do lado do mar ensanguentado
enrolar os corpos escamosos
em torno da sua Fortuna inesperada
acreditando os incautos que de um castigo divino se tratava
pois tinha vociferado contra a oferenda da praia
bramindo a arma
cortando o espaço
desferindo golpes cruéis contra o flanco da garupa do cavalo
cravando lanças nas ilhargas e no bojo
retumbando e gemendo as entranhas
como se o monstro de madeira
tivesse desígnios vivos
nas profundezas do seu esqueleto armado

Sob as patas do cavalo
vieram os homens colocar os troncos da mudança
franqueando as Portas Ceias
derrubando os muros que ampararam o cerco
lançando cordas de estopa em redor do pescoço da besta
sendo domada pelos de constituição robusta
deslocando a montanha de pau muralhas adentro
seguidos por mulheres e crianças entoando cânticos proféticos
lançando preces de purificação em fervorosa jubilação
erguendo as mãos ao ar em sublime devoção
agradecendo a dádiva a Minerva
vaticinando um futuro melhor
sob a égide sagrada de Palas Atena

Colocaram o equus insidioso na Cidadela
todos cegos e em incerne alucinação
dançando intensamente
ao som de cítaras em arco e batuques de pele
cobrindo os templos com ramagens purificadas
exortando os deuses em sinal de gratidão
irrompendo lamparinas e fogos sagrados por todo o lado
tanto nos altares de bairro como nas nascentes de água
óleos de tâmara e unguentos perfumados
oferecidos em homenagem com oblações várias
aos deuses salvadores dos Troicos
um touro sacrificado e o sangue doado
farinha ritual dispersada sobre a escadaria sagrada
luminárias enfumadas envolvendo os espaços
vinho e leite derramado em libações à divindade

Festejavam em euforia a fenda nas trevas
o fim do abismo e das noites sem estrelas
a benfazeja sorte aportada pelo madeiro de patas
fazendo dádivas a Baco
e tocando as flautas de Pã com os Faunos
batendo palmas e exortando danças frenéticas
lançando as lindas bacantes a cabeça para trás
rolando os olhos e atingindo transes hipnóticos
rogando preces cerimoniais aos Penates pátrios
com exuberância e gestos largos
acorrendo os homens aos altares sacerdotais
envergando mantos frígios e vestes formais
adornados com fitas coloridas nas têmporas
e coroas de flores perfumadas
comemorando a deusa na Cidadela de Palas

Com o girar do céu e o regresso das estrelas
percorro a cidade com uma candeia iluminária
e reparo nos Teucros cansados que adormeceram
pelo chão dos templos
pela sombra das casas
sob o manto da lua silenciosa
na grande noite em sonho e vinho sepultada
relembrando cauteloso os Fados enunciados por Cassandra
       - filha de Prímio -
e desacreditados por Febo por amor rejeitado
vaticinando a queda de Ílion
confiando às folhas do oráculo
profecias nefastas

Lasso regresso à casa de meu amo Eneias
recomendando os deuses vigília no telhado
sentado no topo da chaminé
vislumbro o luar espelhado num mar tranquilo sem vagas
isto quando ao longe surge uma armada inesperada
aproximando-se em silêncio
da nossa costa larga
da nossa praia desaperrada
e um alvoroço contido surge junto ao cavalo sagrado
pois das entranhas do animal de pau
saem agora homens armados
com escudos dardejantes e lanças de bronze flamejantes
estranhos aos habitantes da nossa cidade

Correm em direcção aos portões de Ílion
abrindo-os de par em par
quando a armada já se encontrava na praia
deixando entrar os argólicos infandos
que sinuosamente aguardavam o negrume da madrugada
para conquistar a cidade sagrada
para correr o sangue dos Treucos inocentes
apoderando-se das muralhas invioláveis
pela arte pelasga das doações enevoadas
elegendo o cavalo profético
nos altares nefandos dos gregos

Acordem dardânios meus! - gritei do alto da casa de Eneias
ao ver Tróia desmoronar a sua grandeza imaculada
rebentando os fogos pelas ruas e pelas casas
ouvindo-se ao longe o som das armas quebranto
como faíscas negras que rodopiavam infesto
cortando as lâminas os senhores e os servos desesperados
ouvindo ao longe os gritos das mulheres e das crianças aterrorizadas
infiltrando-se a morte em ondas maléficas por todo o lado
entrando os aqueus às centenas no sepulcro amaldiçoado
encostando escadas de encontro às muralhas
transformando a pacatez das entranhas da terra
num monstro com as garras assanhadas
chispando fagulhas e bolas de fogo vindas do ar
saltando sobre todos os Treucos
desiludindo todas as esperanças de paz

Corro a pegar nas crianças e nos penates teucros
levo Astíanax e Julo ao colo em direcção ao Ida
saindo por um portão secreto nos calabouços do palácio de Prímio
desconhecido dos aqueus como segura evasiva
fugindo pelas matas e pelos campos de searas
enquanto Eneias combate a pestliência abatida
sobre a vetusta Tróia onde se abrem todas as chagas
onde corre um sangue negro pelas ruas condenadas
onde o mundo se tisnou de negro
e o medo é aprumado nos brados lutosos das gentes abandonadas
onde os altares já são pasto nefando dos pelasgos violentos
e as preces são mudas ao som dos machados
despedaçando as traves e os batentes das casas
chacinando com rugidos de leopardo
todos os filhos eleitos de Dárdano - o primeiro

Olho para trás uma única vez
      - não vão os Aqueus terem trazido a Górgona com eles
        transformando em pedras os Teucros inocentes -
e vejo os clarões de fogo volteando no ar candente
a ira descontrolada perante a inclemência dos deuses
que se uniram aos Aqueus cruelmente
desferindo golpes e arrasando a neptúnia urbana
escravizando os Teucros e convertendo os templos
levantando da terra as fundações de glória
arrasando e prostando as memórias
da excelsa Ílion dos Deuses.

CRV©2018

20 janeiro 2018

Palas-Atena

Pallas-Atena - Vienne

08 janeiro 2018

Cartas Mudas

Sempre que abro a porta dessa dimensão
há um rasto de luz que atravessa o ar até ao meu silêncio
poalha remoinhada que esvoaça
penetrando ao sabor da aragem que passa
desafiando todas as palavras
que se concentram inquietas
debaixo de uma pedra tumular
da qual fiz o meu silêncio

Observa.
Retira do peito todas as letras guardadas em segredo
bocados de árias sussurradas
entre suspiros e tormentos
psicodramas individuais
exultações várias
jocosidades temperamentais
platonismos apolíneos
e tantas emoções tropeçadas umas por dentro das outras
que se amontoam numa pira festiva
à qual se ateia um fogo empírico que abra comportas
e purifique o âmago megalítico do caminho

Caminha.
Eleva aos céus todas as sementeiras latentes
cria um solfejo de ideias
um tornado discreto
uma nuvem cheia com recortes silenciosos
sobre as partituras do tempo
expondo os colapsos gravitacionais
as parábolas escritas do avesso
destruindo e criando tudo
implodindo e renascendo
colapsando a amálgama erguida
no interior da névoa suspensa

Ergue-te.
Forte como um penedo
espesso e resistente
inspira-te nos lugares recônditos da mente
recebendo a benção dos justos
semeando letras
cravando palmas bentas
envoltas em espasmos iluminados
feitos de suspiros e tormentos fechados
abismos e istmos
alegrias e apologias desenfreadas
cravadas em solo pedregoso e crosta agreste
ansiando pelo equinócio
onde todas os ramos vão florir
onde tomam forma todas as quimeras

CRV©2018

01 janeiro 2018

Myron

Disc Thrower - sec: V - B.C.

26 dezembro 2017

Nihil Humanum est

Surgiu por detrás dos escolhos timoneiros do alto
sobrevoando em revoadas
os acidentes geográficos da montanha pátria
que se erguiam contra o céu em ameaça
circundados por um corolário gasoso agitado
nuvens sem representação morfológica exacta
suspensas no ar, agarradas em confidência
esquadrinhando as fragas empoleiradas nos apogeus ásperos
iluminadas pelo sol que despontava
espalhando a luz sobre as neves perpétuas abandonadas
enterradas nas cordilheiras de pedra escarpada

Sem bater as asas
planou ao sabor dos zéfiros ascendentes
desenhando círculos, ângulos, curvas
arcos imensos cruzados sobre a floresta dormente
lívida de frio
paralisada pelo gelo
com todos os animais recolhidos
as árvores petrificadas
e o silêncio lúgubre
dos locais entorpecidos
pelos solstícios de Dezembro

Procurava uma ilha de clorofila
segura e tranquila
da qual pudesse fazer casa
ninho
terra prometida
escorar as garras de rapina
nos ramos obstinados pelas adversidades do tempo
escolher uma árvore
construir um mundo de privacidade
longe dos lobos
das alcateias
das sombras da noite
das ratoeiras
e dos dispositivos de caça ilegais

Cruzou os céus pela frente do sol de inverno
perscrutando os recessos das escarpas graníticas
sobrevoando os cursos de água limpa
as copas geladas
e os lagos de água fresca
deparando-se com uma clareira na mata
rodeada por sete-em-rama de porte variável
afastada do estranhamento da floresta
perto de uma linha de água adjacente
de carácter permanente
que prometia assegurar
a subsistência do advir
incerto

CRV©2017

24 dezembro 2017

Mesopotamia

Mesopotamia

13 novembro 2017

SHREAK a Ovelha

Certo dia,
Shrek a OVELHA
recrudesceu de uma grande prostração
daquelas que tolhem os movimentos
e humedecem profundamente a visão
fazendo-a tugir um balido plangente e sufocado
num tom melancólico e suspirado
fendendo toda a sua plácida e concomitante existência
sentindo eclodir dentro de si
prenúncios de uma secreta metáfora
que a envolveu subitamente numa revelação agitada
despertando-a de uma letargia
que há muito a serpenteava

Timidamente abriu os olhos cegos mortiços
criando-lhe um ímpeto energético frenético
como quem contém explosivos enterrado no espírito
levantando-se com vigor e energia
desenferrujando as patas empenadas
escorando as dianteiras com firmeza
e coiceando com engenho e travessura as de retro enjambradas
alforriando o coração emparedado por argamassas
surgindo-lhe de rompante um psicodrama libertador
que a levou a pousar o seu pasmo olhar observador
para lá das estacas do bardo
até às margens solitárias do rio BoaVida Formoso
promovendo o desaguar
da sua entorpecida essência interior

Observou o verde dos campos, as flores e as árvores
o balançar ameno do castanheiro da casa
os primeiros raios de sol que trespassavam as folhas
as manhas das libelinhas de incursões provocadoras
inspirando a brisa silenciosa proveniente da montanha
despontando-lhe um espasmo encrespado em torção arrepiada
que a percorreu desde o retro ondulado
até à excresceste giba óssea da mioleira
sacudindo um moscardo das orelhas
e franzindo a testa com perplexidade e estupefação
ao avistar um bando de aves
que alcançava os picos elevados da montanha
pensando que seria de grande dimensão
ter asas adequadas a voos insignes emancipados

Shrek a OVELHA
foi tomada por um torpor claustrofóbico
pois vislumbrou naquele voo instrumental
uma metáfora messiânica de abcissas coordenadas
animada pelo fulgor de grandes mudanças
decidiu ver o mundo, sair do bardo
livrando-se dos ralhos vernáculos do dono autoritário
e de uma tosquia primaveril da farta cabeleira
que no futuro poderia afectar mais do que a sua lanígera branca

       (deixaria de rebolar-se na relva atraindo o cabresto sensível
        as pastagens pobres, as charnecas e baldios
        as tosquias da lã de acordo com o grau de frisura da fibra
        a época de cio dependente dos períodos de luz)

Medindo as distâncias dali aos cumes das montanhas alvas
achou prudente aspirar a um salto mais moderado
ficando-se pelas margens do riacho solitário
que corria fresco e liberto ao acaso
por entre seixos e urze branca
escondido por acácias daninhas e um juncal de canas
habitado por cigarras e rãs danadas
com organização de sons em sequência escalada
que a impediam de toscanejar em paz.

E nisto adestrou a sua pulsão ávida, curiosa e natural,
que se entranhou nas suas patas traseiras
dando pequenos coices à laia de zaragateira
preparou o impulso derradeiro e final
para o salto de fuga do aprisco penitencial
Inspirou de um só fôlego o ar que passava
e iniciou a corrida entre o ponto em que se encontrava
e o vínculo imaterial que lhe alvitrava a liberdade
Sustendo a respiração
deu saltos olímpicos com balanço e distinção
imitando a arte e a graça dos ruminantes ágeis
aproximou-se da cerca e elevando-se no ar
alongando o corpo e esticando as patas esbeltas
visou o umbral da cerca e os campos
por onde deambulará em descontrolada debandada

Mas Oh! que infelicidade ocasional e fortuita
Shreak a Ovelha
acabou de bater com os seus belos apêndices ósseos
na trave mais mal posicionada da cerca
caindo redonda como uma ilustre desamparada
num local onde prosperavam malmequeres nativos de África,
ervas-azedas, papoilas-de-espinho e cardos bicudos
enterrando-os
tanto na traseira fofa como no focinho lanzudo.
Atordoada
esperou que os olhos parassem de rodar
e que a pouca massa cinzenta se ajeitasse no seu lugar
pois tentaria outra vez e mais uma se necessário
com a determinação que só acompanha os objetivos ousados
erguendo-se com rapidez e determinação
não fossem as suas irmãs perceber
o seu opróbio vexatório tombo no chão.

E ponderando novamente os riscos associados
voltou atrás e recomeçou a corrida
em direcção à guarda repressora do bardo
por isso correu cortando o vento
determinada a liderar a sua própria aventura
lançando-se com força, agigantando o seu impulso no ar
conseguindo ultrapassar a barreira obscura
desaguando cada gota do seu ser e pensamento
em esforço controlado
indo cair redonda do outro lado da cerca do prado

Shreak a Ovelha
correu para os subterrâneos das grutas escarpadas
sobrevivendo na mais obscura clandestinidade
habitando secretamente túneis claraboias e riachos de montanha
comendo erva tenra e bebendo dos veios que sulcavam as pedras
sete anos passaram até regressar ao bardo
quando o peso da lã que lhe pendia das costas
lhe tolhia os movimentos e a impedia de socializar
a alegria de a rever foi imensa
pois tosquiaram-lhe todas as camadas de pelo frisado
tendo perfeito um fardo de 27 kilos de lã encaracolada
que foi oferecido para aquecimento e paramentos
com grande generosidade amplitude e grandiosidade
a todos os pobres, pedintes e maltrapilhos
da sua pequena comunidade

CRV©2017

30 outubro 2017

Robin Wight

Fantasy Wire Sculptures - Fairies

15 outubro 2017

A Casa Centenária

Em memória do meu avô Joaquim



As memórias da casa centenária
tinham raízes antigas
que se erguiam do chão
com a demagogia das conquistas clandestinas
espinhos obtusos que cercavam a vida
entortando as ombreiras das portas
propagando-se pela estrutura como uma aleivosia fria
evadindo os seus ramos volteados
pelas frestas das janelas enjambradas
à procura de um recurso entorpecido
de uma ideia revolucionária
de uma fresta revelada obscura iluminada
que lhe desse uma senda definitiva
para exterminar a ditadura vitupeada

Havia nas conjuras secretas
uma sede atormentada de autonomia
vozes embargadas que em sussurro eclodiam
inscrições e manifestações destemidas
que desafiavam a heteronomia do Estado
ceifando com estucadas determinadas
a melancolia circunspectamente instalada promovida
pelo negrume das perseguições obsessivas
as deportações inesperadas
a castração das almas livres ensanguentadas
e o amargo fel das prisões injustiçadas

A casa centrava-se
nesse ardor de náusea ofegada
onde o ramalhar de vozes conjuradas
se concentravam em sussurradas congeminações
contra as atmosferas rarefeitas de honra e dignidade
utilizando um scriptum dialéctico cúmplice dissimulado
vermelho sangue gravado em todas as palavras
segredos e conjuras ajustados à rebelião armada
silhuetas com reflexos da “luta continua”
Deus, Pátria e a liberdade tanto ansiada
conspirações ocultas contra a vil ditadura
a “revolução” e a voz acossada da insubmissão
um solo longe dos opressores condenados
liberto de todas as considerações abstratas
do cinzento amargurado sufocado imoderado
dos espaços exteriores controlados
tendo apenas nas mãos os traços firmes da esperança
volteando a sorte madrasta a cada mudança
sonhando com o dia distante agora
em que a vitória explodirá esfuziada
readquirindo a ferro e fogo
a tão desejada procrastinada
LIBERDADE

CRV©2017

15 julho 2017

Bertel Thorvaldsen

Ganymede Waters Zeus - 1817

12 julho 2017

A casa sobre a praia

para a G.V.P.


A casa caiada sobre a praia
vibrava
como um mundo de pura alegria invariável
com recantos de luz amplificada
que vagueavam pelo chão encerado
acompanhando invariavelmente
as medidas exactas da tarde
junto ao tranquilo alpendre envidraçado
em momentos de justo descanso eterno

Enquanto uns repousavam da praia
nós corríamos para um mundo sem dimensões
feito de fantasias ágeis
e desmesuradas agitações
onde se incarnavam labirintos e invenções
com bocados de alma tatuados
pelas paredes
pelo tecto do telhado
feito com mãos a três dimensões
com a liberdade de um poema
e as cores garridas de uma perspectiva animada
agigantada
pelo estremecimento de viver
por dentro
em sintonia
com o lado melhor de todos nós

Cozinhávamos a ternura dos nossos segredos
na vinda dos caminhos secretos
com longos abraços
sementes de cardo
amoras por entre as giestas
flores de fumo afinado
encontros que faziam tremer as pedras
adornos, chapéus e colares
tolerados por apêndices elevados
máscaras de palhaços espantados
por entre o apelo ao silêncio telepático
e as risadas estridentes
das coisas mais importantes do mundo

Na busca do desconhecido sobrenatural
as caminhadas pela selva
entre a água cristalina da fonte da Margarida
e os muros decadentes das quintas em redor
adornados com as garras das silvas inconformadas
carregadas de amoras silvestres
e flores selvagens entrelaçadas
gafanhotos empoleirados em vagens
osgas, cobras e lagartos dissimulados na terra
gritos histéricos
corridas de pânico
tropeções
e as pedras a enredarem-se nos sapatos
numa depuração das corridas proféticas desatinadas
cravadas nas grutas recônditas do passado
viço pungente enxertado
nas memórias que convergem
agarradas a um fio de prumo perpendicular
sentadas num baloiço
de frente para o mar
por cima de lingotes de ouro
desenhados
para além da linha do horizonte

CRV©2017

17 junho 2017

Apolo

13 junho 2017

6 Haikus - Das Palavras ácidas


Passa os dedos pelos ângulos apolíneos das palavras

decifra-lhes a origem do espasmo

cataliza todas as formas de pirotecnia forjada



Foge das palavras ácidas,

das fáceis também

ambas concorrem para o submundo do vento



Tem cautela com a rectórica do ímpio

pois na sua solidão táctil

visa impor-se numa latitude cobarde



Não reajas ao agastado

na próxima madrugada as suas palavras

serão transportadas por asnos e camelos



Mantém a tua integridade inabalável

olha com desdém as palavras

que se lançam imprudentemente no abismo



Observa as palavras do cínico na boca desenhada

aguarda pacientemente

pelo último suspiro


CRV© 6 HAIKUS

30 maio 2017

Henri Bouchard

Young Girl with gazelle

28 maio 2017

6 Haikus - Pedras

Cuida da tua casa de pedra

das sombras apolíneas que a envolvem também 

deixa-as preencher o espaço introspectivo das palavras



A ilusão trágica das estátuas de pedra 

consiste em desconhecer 

como seriam talhadas as expressões das mãos



Enaltece o poder das pedras 

como Albertus Magnus profetizou 

são intrínsecos os elementos secretos sem nome



Tenta encontrar o sonho

na escalada da montanha

Decifra-o por entre as pedras serenas



Ignora os tiros de pólvora seca, as pedras também 

salta por cima da morte 

como um pássaro que voa rumo à liberdade



Pouco importa aquele que te arremessa pedras 

o vento tratará de lhe oscilar a mão 

esculpindo arcos frustrados no tempo


CRV© 6 HAIKUS

20 maio 2017

Notus

A casa tinha uma senda desassossegada
envolta numa imutável aura secreta
pois aguardava numa expectativa ávida

      (antes do prefácio das grafemas ideográficas)

que a luz se curvasse sobre a terra
e esgravatasse um buraco no chão
escapulindo-se o astro em perícia sem deixar rasto
eclodindo sem mordaça
o movimento artesiano das mãos

      (presságios de um combate
       contra o obscuro de uma cave)

lambendo devagar o ar eclético aperfeiçoado
com um efeito intenso brando agitado
torneando as linhas do espaço
talhadas entre o ajuste adequado do crâneo
e os feixes equidestantes do peito

Na noite invertebrada
na convergência das horas vagas
surgem as entranhas
estratégicamente posicionadas
os santos mudos em vigília adequada
a reflexão líquida desenrolada em combustão lenta soletrada
as preces
o toque leve da boca contra as paredes
a porta animal que se perde condenada
o presente futuro obstinado resgatado
inalado nos espectros que se elevam
nos ângulos obtusos da visão exumada
por dentro de uma atmosfera
pausadamente metamorfoseada
em constante mutação

Na ilha que navega sobre as águas
agarro os odres de pele disfarçados
ofertados por Aeolos com mil cuidados
ébrios com os ventos alísios aprisionados
evitando os adamastores da noite simulada 

       (os traidores que vivem do lado de fora
       os vendilhões do templo idolatrado
       os servos vendidos pagos a soldo enganado
       os que libertam os fogos sectários agitados)

escutando apenas o tranquilo cruzar das águas
embalada por Notus
numa jangada de pedra em suspensão colossal
fazendo lastro rumo aos meridianos do sul
numa recta coplanar para lá de Ítaca
lendo todas as refracções da alma,
das mãos,
dos sentidos que rebentam em vegetação subtil
cumprindo as profesias de Delfos
ceifando todas as montanhas que se atravessam
navegando de costas para o silêncio do mundo
embalada num sopro épico que se agrega
retirado de uma odisseia
feita de traços de oração seráfica
oposta às coordenadas de Ulisses

CRV©2017