Acorriam todos os anos ao largo ermo do bairro
repleto de laranjeiras e limoeiros decorados a preceito
com ornatos de flores e fitas coloridas agitadas
santos de pau carunchoso suspensos
faixas entrelaçadas e triângulos de papel em nastro
com as insígnias representativas
da comunidade de pedreiros, padeiros, pescadores
e vesgos das cores naturais
que se insinuavam na feitura dos preparos
dando utilidades lúdicas às ferramentas da sua arte
acertando pedras da calçada desengonçadas
construindo cavaletes com tábuas usadas
fazendo das pranchas mesas de ocasião
quer para elóquios momentâneos inspirados
quer para as esperadas comezainas
em animado rega-bofe da população
Nas comemorações à Senhora da Boa Viagem
davam-se alvíssaras ao padre pródigo e liberal
por acolher à porta do venerado santuário
um notável ladário de penitências de expiação
uns de joelhos rastejavam até ao altar
outros de cócoras oravam em comiseração
os da terra misturavam-se com as gentes de fora
atraídos pelo mesmo ensejo de profecia e salvação
realizando benzeduras de protecção
contra jetaturas, malefícios e sortilégios de lua cheia
mezinhas sicárias, quebra-luzes, para-ventos
e outras crenças obscuras arraigadas ao espírito da gente
e a fenómenos de natureza divina extraordinária
Por altura dos unguentos de alma
a portada da igreja era o local preferido
do padre humoso de batina alva
cuja extensão vertical atarracada
desfavorecia-lhe a bainha do hábito
que se arrastava pelas pedras da calçada
formando uma coroa de lama preta
junto às cândidas meias elásticas
que espreitavam encardidas
por entre os recortes das alparcatas missionárias
adquiridas num colégio de frades
como penitência da sua soberba dissimulada
divulgando assim ao seu rebanho
uma imagem de digna austeridade eclesiástica
As meias firmadas ao apêndice animal
com um cadarço de seda rosa enrodilhado
ajustavam-lhe as sanefas desproporcionadas
evitando entorpecimento de artelhos
dilatações de varizes, edemas, flebites,
e tumefações generalizadas dos antrópedes posteriores
pois obedecendo o corpo ao peso da gravidade
o mais certo era a natureza curvar-lhe o suporte vertical
à imagem dos truncados arcos góticos
ou das aduelas dos toneis inchados
pela fermentação natural nas caves Primavera
depois utilizado na eucaristia de Cristo ressuscitado
Com uma avantajada proeminência abdominal
o santo eclesiástico tinha um tecido adiposo excepcional
fazendo lembrar uma Matrioska de sete saias
ou um ovo da páscoa de chocolate amargo
escondendo por baixo do cândido hábito
inolvidáveis brindes da farinha Amparo
que distribuía gratuitamente pela população
seja o conjunto de loicinhas antigas Mari-Lena
os tubos Cisne de cola seca
apitos de plástico coloridos da Disney
os 7 pára-quedistas desportivos
o miúdo da trotinete com a corneta verde
o pateta, o macaco ou o ursinho de boina em PVC
ou ainda as caixas-coração com bonecos amarelos
todos da marca registada “Predileta" ou "BULLY 33"
Três peças guarneciam as mãos do sacerdote autóctone
o terço para as benzeduras das beatas
o lenço de quadradinhos para o ranho a meio da eucaristia
e o anel de ouro que ostentava flamejante
feito de encomenda com as esmolas dos pobres
num ourives de uma terra algures distante
para usar em cerimónias com pompa e sumptuosidade
à medida do seu dedo mindinho avantajado
que agitava em alvoroço
sempre que os bajuladores serviçais do povo
vinham de rojos comungar dores e penitências
beijar-lhe o anelão incrustado com um Cristo torturado
onde sobressaía uma cruz em diamantes que o estimulava
sentindo-se um rei com o povo a seus pés
um altruísta Citizen Kane escolástico
de abnegação e piedade pelo sofrimento da ralé
O ritual mexia com as suas convicções fantasiosas
gerando-lhe um êxtase intrínseco relacionado
pois o padreco murmurava orações circunspectas
com pertinácia devoção exacerbada
apelando à graça de Deus e ao conforto da congregação
instigando no seu corpo um deliriam tremens
pois a instrumentalização do beija-mão
lembrava-lhe as antigas mordomias escravas
sentindo-se em segredo o senhor da uma plantação
cuidando do seu rebanho com zelo e diligente austeridade
expulsando as ovelhas ranhosas e os carneiros indesejados
bajulando as fêmeas domesticadas
enaltecendo a qualidade dos machos de raça
mas não admitindo de forma liminar
a presença de varas de porcos
ou quadrúpedes tresmalhados
Era neste feudo suserano que o padreco avantajado
andava num corrupio por entre a populaça
aproveitando a baderna nocturna
saía da sacristia com a caixa das dádivas
ocultada por baixo da roupeta larga
correndo as tascas das cercanias
aprovando a transmutação do vinho
benzendo senhoras de gema
cavalheiros apessoados, galfarros
e alcateias de serviçais dedicados
divulgando a palavra de Deus
pois todos eram merecedores de benção e caridade
fossem putedo pervertido em prostíbulos
ou animais despojados de casa
As ruas foram engalanadas para a procissão
nas sacadas abriram-se as colchas das madrinhas e das avós abastadas
prodigiosos fogaréus ornamentavam becos e pátios
todos se acotovelavam para um posicionamento capaz
encavalitando-se nas varandas desafogadas
ou no pelourinho do largo das vergastadas
a fanfarra dos bombeiros trouxe pratos e bombos
vieram atiradores de foguetes e cabeçudos enormes
os cozinheiros montaram os banquetes sociais
com uma variedade infinda do reino animal
grelhadas mistas, açordas de alho e poejos
sopa de tomate com bacalhau e queijo de cabra
colhões de porco preto, carapaus no espeto
bexigas grelhadas, farta-rapazes da Beira,
queijo picante de Castelo Branco
vinhos à Martel, jeropigas e gingas repletas
minis e lambretas à discrição.
Ao pôr-do-sol aprontou-se a solene procissão
ateou-se fogo ao madeiro empilhado
que chispalhou profusamente iluminando o adro
montaram-se os andores com os veneráveis canonizados
e quando todos se aprontavam para desfilar
ao longo de coloridos tapetes de sal
eis que aparece o padre esbaforido
à porta do santuário a gritar angustiado
“Roubaram a Senhora da Boa Viagem!"
E o povo entendeu ser esse um mau presságio
ficar sem a protectora de pescadores e povoado
dispondo-se os buliçosos a procurar o larápio
“Onde está ele?” “Vamos no seu encalço à paulada!"
pegando sem delonga em lenhos incandescentes
incitando de imediato à revolução armada
O povo dispersou rua abaixo
na senda do estuporado larápio
pisando os arranjos ornamentais feitos de sal
as flores, os cristos, os peixes e os barcos de pesca
procurando a imagem da Senhora entre becos e bancas
submergindo a tristeza nos rostos desesperados
gritando “Anda cá ó ladrão!”
na expectativa de um sinal ou de um fenómeno divino extraordinário
mas da Senhora nem sombra, indício ou traço
apenas a névoa da madrugada
e um mergulho num desespero espiritual
deixando todo o povo curvado
sem a bem-fadada protecção secular
O prenúncio das pescas de porvir
via-se agora com agoiro comprometido
e o povo recolheu às suas casas desolado
clamando pelo fim das adversidades
alvitrando o remanso de melhores dias
despedindo-se do padre atarracado
que se recolheu cabisbaixo às catacumbas do santuário
dando à chave da sua cela em tom humilde e oratório
pedindo a remissão dos pecados da comunidade
apelando pio e penitente ao perdão do anjo Custódio
que convole os gananciosos, os transgressores, os pecadores
e todos aqueles que nasceram com vícios
ou indecorosa degradação moral
Nisto abriu a porta do seu guarda-fato
acocorou-se para dentro do armário
e desaparafusou as costas de madeira natural
encobertas pelos paramentos litúrgicos
as batinas pretas de 5 abotoaduras e 33 botões corridos
em honra às chagas de Cristo e sinal de morte para o mundo
as capas e túnicas alvas da eucaristia dominical
dando por detrás acesso a uma portinhola de relicário
onde guardava uma cruz peitoral,
um anel de São Pedro e um báculo de pastor papal
acessórios privados dos altos eclesiásticos
sentindo o padre serem seus por direito
pois tinha um ego enfunado não permitindo
beliscadura na sua magnitude secular
E eis que no canto do oratório ocultado
por detrás dos cíngulos de castidade
e outros instrumentos de expiação à danação
encontrava-se a Senhora da Boa Viagem
desaparecida por mistério fortuito condenado
emparedada no compartimento secreto do padre
junto a um nicho de imagens abnegadas
emergindo daí uma energia pia e radiante
um ardor que bulia com o seu sistema homeopático
presidindo em solo comisso ao ritual de câmara ardente
criando axiomas empíricos
e congéneses interlocutórias pessoais.
O sacerdote relatava mansamente a sua dor
ressentimentos mortais e ciúmes viscerais
martirizando-se e penitenciando-se da cobiça alheia
tendo fúrias na competição com as aldeias próximas
invejando os santos alheios, relicários vários,
os retábulos e altares decorados
necessitando de mortificar o corpo e alma
ora dando com a cabeça no chão
ora usando cilícios de crina ou de sete pontas de metal
à imagem de São João da Cruz na subida ao Monte Carmelo
fazendo grandes hematomas na calota craniana
constituindo o martírio solitário
uma penitência de inolvidável expiação
transtorno que aceitava com necessária abnegação
certo do seu destino fadário:
"Um trono dourado aguardava-o no Reino dos Céus."
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